Raizes Pentecostais

Pr. Gunar Berg1
Superintendente da EETAD e Edições Bernhard Johnson

A igreja apostólica viveu nas sombras, escondeu-se em catacumbas, cultuou num templo que não lhe pertencia, e foi posta em cadeias que não merecia. Inaugurada num cenáculo que não era seu, caminhou a pé, viajou em escaleres, enfrentou surras, apedrejamentos, degolas e massacres. Ela foi injustamente acusada, e foi julgada sem critérios. A igreja apostólica foi posta em exílio e exposta ao martírio, tudo sob os olhares sanguinolentos dos homens mais poderosos do mundo, os césares, que com força a odiaram. Foi assim no primeiro século, e nos duzentos anos seguintes. E foi assim por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus Cristo.

A igreja do cenáculo foi marginal, mas sempre percebida. Embora hostilizada, perseguida e assassinada, ela sobreviveu aos algozes, e seus mártires são lembrados, enquanto os carrascos são esquecidos. Um atento vestibulando só pode citar dois ou três imperadores romanos, mas qualquer ateu está pronto para menosprezar com detalhes as vidas de Paulo, Pedro, João ou outro dos apóstolos de nosso Senhor.

Nos últimos mil e setecentos anos, a igreja deixou o cenáculo, saiu das tumbas, rompeu as cadeias. Teve restituídos a si os bens expropriados, e tornou-se dona de quase infinitas posses. Se a igreja apostólica foi prisioneira nas galés, o clero medieval era dono de navios de guerra e proprietário de exércitos. Um dia perseguida pelos poderosos, agora a igreja era fazedora de reis. Caminhando do cenáculo ao gueto, a igreja passou as trevas nas altas catedrais e castelos medievos. A estrela d’alva da Reforma, John Huss, profetizou o fim da escuridade, mas o sol não brilhou muito tempo, pois o esplendor reformado deu lugar ao conformismo opaco, ao formalismo embaçado.

Quando o século XIX caminhava ao seu fim, um som como de um vento veemente e impetuoso soprou mais forte que em momentos anteriores da história. Na África do Sul, o tradicional Andrew Murray recebeu a cura divina e, passando a crer na atualidade dos dons espirituais, liderou um avivamento autêntico, ainda pouco conhecido. Nos Estados Unidos, e dali para o mundo, Seymour e Parham compreenderam e experimentaram o poder do Espírito Santo, e nós mesmos, no Brasil, recebemos o impacto do derramamento. Pareceu que estávamos de volta ao cenáculo, mas não.

Quem conhecesse apenas os últimos vinte anos da história pentecostal brasileira não teria dúvidas em dizer que, por fim, saímos das sombras. Os templos multiplicam-se, e com eles os crentes. Promovemos claques na internet, temos influenciadores seguidos por milhões, e elegemos mandatários. Ao nosso redor tudo é festa, tudo é conclave e congresso! Somos o movimento pentecostal, o maior do mundo. Estruturamos o pentecostalismo, criamos a nossa pentecostalidade e já publicamos muitos mais livros a respeito do Pentecostes do que somos capazes de ler. Temos uma teologia própria, uma escatologia particular, e uma hermenêutica que carrega nosso nome. Criamos a nossa horda de teólogos, e já podemos fazer encontros com os muitos intelectuais que amontoamos. Parece que fomos do cenáculo ao pináculo, mas nos mudamos da casa de oração para o gueto.

Quem nos visse agora, e somente agora, não duvidaria de nossa grandeza. Quem nos viu antes sabe a nossa atual pequeneza. Agora, tudo o que fazemos, escrevemos e pensamos é pentecostal, pentecostalismo e pomposamente pentecostalizável. Antes, porém, tudo era simples e bíblico. Nas prateleiras das livrarias abundam as teologias pentecostais, as escatologias pentecostais, a soteriologia pentecostal e, claro, a terrível hermenêutica pentecostal. No gueto em que nos colocamos, somos apenas mais um grupo de teólogos bairristas, tão parcos quanto os reformados que veneramos ou os neopentecostais que imitamos. É tudo pentecostal, é tudo nosso, mas é tudo pequeno, é um gueto no qual nos prendemos, onde nos enclausuramos e voluntariamente desenhamos pequenas chamas em nossas portas.

É tudo nosso, mas prefiro o tempo em que nada tínhamos. A teologia era bíblica, e a escatologia também. Se houvesse soteriologia, ela seria escriturística, e a hermenêutica era igualmente canônica. Não tínhamos um gueto porque não precisávamos de um, e o que possuíamos não caberia no cadinho das definições teológicas. Entre ser calvinista ou arminiano, escolhíamos ser corajosamente bíblicos. Não nos dizíamos pré-tribulacionistas por sermos pentecostais, mas éramos pré-tribulacionistas e pentecostais porque é o que a Bíblia ensina. E nunca duvidamos de que a chave para entender a palavra de Deus é ela própria.

O nosso pentecoste sintético tem de tudo o que havia no autêntico derramamento do Espírito Santo. Uma grande voz, uma capaz de correr a internet e impressionar com os vários milhares ajuntados no mesmo lugar. Pregadores audaciosos e com o dedo em riste. O cenáculo nem nos comportaria, pois cento e vinte é um número modesto para quem se conta aos milhões – milhões de eleitores, milhões de compradores, milhões de reais. É a nossa mais autêntica pentecostalidade… muito vento, muita trovoada e nenhuma chuva.

A igreja apostólica e primitiva esteve escondida, mas sempre fez diferença; a igreja de hoje está em evidência, mas ninguém a vê, é como se ela não existisse, pois, como tudo o mais, o seu pentecoste é pentecostal, e não bíblico. Podendo destacar-se, quer misturar-se e ter tudo como o têm as outras nações – seus teólogos, sua teologia e até a sua própria Bíblia. Mesmo os seus templos, gradativamente estão sumindo na paisagem: ou confundem-se com a ostentação de requintados centros de compras, ou camuflam-se com paredes pretas como as das boates e oficinas mecânicas. Tudo nosso, próprio, humano e terrenal. Nada é bíblico, santo ou divino.

Do cenáculo ao gueto, saímos de onde nunca deveríamos, e chegamos a onde não poderíamos. No cenáculo estava o poder de Deus; no gueto, tudo é conforme o que podemos. No cenáculo dependíamos do Espírito; no gueto, descobrimo-nos humanamente poderosos. Do cenáculo seríamos enviados a todas as nações; do gueto não sairemos, daqui ninguém nos tira, pois ele é nosso, obra das nossas mãos. O nosso gueto é o nosso fim, uma catacumba diferente daquelas em que a igreja apostólica se escondia: aquelas lhes serviram de templo, a nossa nos será por túmulo. Voltemos ao cenáculo.

  1. Gunar Berg de Andrade é historiador e formado em Teologia pelo Instituto Bíblico Pentecostal e pela Global University. De suas atividades destaca-se que é coordenador acadêmico da Escola e Faculdade de Educação Teológica das Assembleias de Deus – EETAD e FAETAD, professor-fundador do Instituto Bíblico de Paulínia (SP) e professor-convidado de outros seminários. Seus artigos e reflexões são publicados nos periódicos da Casa Publicadora das Assembleias de Deus – CPAD; além disso, mantém um canal no YouTube (youtube.com/c/gunarberg). Ele é co-autor e autor de outros 5 títulos. Nascido em Diadema-SP, o pastor Gunar Berg e sua esposa Ana Lúcia e suas duas heranças, Estevão (15) e Amy Beatrice (8), moram no interior do estado de São Paulo, e servem ao Senhor nas Assembleias de Deus.  ↩︎