Por Profº. Márcio José Estevan1
Presbítero na Igreja AD e Professor da EETAD

Uma entrevista sobre a Bíblia e suas traduções com o Professor Marcio Jose Estevan que é bacharel em Letras com especialização em Tradução, formado em Teologia pela Escola de Educação Teológica das Assembleias de Deus (EETAD) e pelo Centro de Ensino Superior de Maringá (Cesumar), professor de Língua Portuguesa e Literatura; é presbítero na Igreja Evangélica Assembleia de Deus em Valinhos-SP. Autor do livro “Manual de Língua Portuguesa para Obreiros Cristãos” (CPAD).
1. Como se dá o processo de tradução dos textos bíblicos? Eles são confiáveis?
Considerando entre os principais desafios na produção de uma tradução precisa a grande diferença entre essas línguas antigas e nossas línguas modernas, os processos de tradução da Bíblia têm se alterado bastante ao longo dos anos, dependendo da língua receptora da tradução. Atualmente, por exemplo, sociedades bíblicas de todo o mundo agilizaram em muito a quantidade de traduções por meio da cooperação e assistência de falantes nativos. Os processos são, sim, confiáveis, visto os tradutores serem conscientes de sua tarefa delicada e complexa que, ao mesmo, tempo demanda um esforço contínuo, envolvendo a conversão dos textos originais em hebraico, aramaico e grego em uma linguagem que os leitores modernos entendam facilmente.
2. Qual é a importância da Septuaginta, a tradução grega do Antigo Testamento, na história da tradução da Bíblia e na interpretação dos textos hebraicos?
A importância da Septuaginta se justifica por diversos motivos. O primeiro deles, logicamente, são as muitas citações do Antigo Testamento feitas pelo Senhor Jesus, muitas delas, do texto da Septuaginta. Da mesma forma, os escritores do Novo Testamento, cuja maioria das citações também se baseou no texto da Septuaginta em lugar do texto hebraico consonantal, exigindo uma leitura mais atenta por parte dos leitores, a fim de identificarem possíveis variações textuais existentes entre ambos os textos. Seu principal valor textual reside no fato de ser uma versão de um texto hebraico que antecede o texto massorético em cerca de um milênio, fornecendo materiais para a reconstrução de uma forma mais antiga do que ele, além de servir de base para inúmeras outras traduções.
3. Qual a importância da escolha de palavras e o impacto das diferentes abordagens de tradução, como a tradução literal versus a tradução dinâmica equivalente?
A importância da opção pelo método de tradução com sua consequente escolha lexical é indiscutível e gera acirrada discussão teológica na atualidade. A opção pelo método de tradução deve, antes de tudo, priorizar a plena compreensão do leitor atual. Por um lado, o método por equivalência formal, enquanto prioriza a tradução que exige fidelidade textual total, é considerada ineficiente por conservar determinadas palavras tidas como arcaicas e absolutamente desconhecidas por leitores iniciantes e por grande parte dos brasileiros da atualidade. Por outro, a opção pelo método por equivalência dinâmica, enquanto prioriza a facilitação de compreensão do leitor, gera um “empobrecimento” na capacidade cultural do público-alvo. Desde John Wycliffe, os impulsos para traduzir a Bíblia para uma linguagem que o leigo possa entender norteiam as traduções bíblicas e ninguém em sã consciência usará uma Bíblia de Almeida de 1691. Porém, paralelamente, podemos e devemos palmilhar o caminho inverso: nos esforçarmos por elevar o nível de vocabulário dos leitores evangélicos atuais. Não sacrificando a adequação cultural e a legibilidade, mas preservando a fidelidade às Escrituras e não perdendo a beleza e força dos originais, procurando atingir um equilíbrio ideal entre esses objetivos ao produzirmos nossas traduções.
4. Qual é a importância de selecionar os melhores originais ao traduzir a Bíblia para o público protestante? Quais critérios são considerados para determinar a autenticidade e a qualidade dos originais?
O trabalho tradutológico das Sagradas Escrituras exige a apreciação da base textual em que ele foi realizado. O Antigo Testamento não demanda maiores preocupações, haja vista o Texto Massorético, base textual da maioria das traduções modernas, nos ter chegado praticamente intacto, em virtude do exímio cuidado dos massoretas. O cuidado maior recai sobre o Novo Testamento, que não teve o mesmo tratamento, visto suas primeiras cópias que originaram as que hoje dispomos terem sido produzidas por crentes voluntários nem sempre hábeis na escrita, gerando considerável quantidade de variações textuais. As cópias dos primeiros séculos da Igreja Cristã produziram famílias de cópias caracterizadas por semelhanças regionais, resultando em alguns textos modernos, do Novo Testamento Grego, por um lado, o Texto Majoritário e o Textus Receptus de Erasmo de Roterdã, de 1516, base de Bíblias como a King James e a de João Ferreira de Almeida. E, por outro, os textos críticos de Westcott e Hort e de Nestlê Aland, formados por uma menor quantidade de manuscritos mais antigos. As traduções modernas utilizam mais o Texto Crítico. Ambos têm vantagens e desvantagens, cuja distinção, no entanto, é de cerca de 5% de todo Novo Testamento e que em nenhum ponto compromete as doutrinas centrais da doutrina cristã. O mais importante é escolher uma tradução que seja fiel ao significado original. Os critérios atuais são determinados pela comparação dos manuscritos que permite a reconstrução do texto do Novo Testamento, o mais próximo possível dos originais.
5. As técnicas de tradução desempenham um papel fundamental na comunicação das mensagens bíblicas. Poderia discutir as técnicas de tradução mais comuns usadas na tradução da Bíblia para o inglês ou outra língua? Como essas técnicas afetam a interpretação do texto bíblico?
Técnicas de tradução são ações de cunho linguístico e técnico praticadas por tradutores para a realização do processo de tradução e são, sim, fundamentais para qualquer tradução técnica, incluindo as feitas para a língua inglesa. Podem ser divididas em dois grandes grupos: estrangeirizadores (manter elementos da língua estrangeira), e domesticadores (acomodar a tradução à língua de chegada). Os primeiros se dividem em tradução palavra por palavra e manutenção, diferenciados um do outro pela unidade de análise daquilo que se mantém: se houver manutenção no nível morfológico (palavras e morfemas), diz-se “palavra por palavra”; se houver manutenção nos níveis do léxico, da sintaxe, do estilo e das representações simbólicas (cultura), diz-se “manutenção”. Cada tradução sofreu um processo diferente. As versões King James e New American Standard foram traduzidas no estilo palavra por palavra, em função da ausência de técnicas de tradução em 1611, ano desta tradução. Já a versão New Living Translation foi traduzida pelo método de frases por frases (verter a ideia do texto de uma língua para a outra). O inglês na qual a versão King James foi traduzida não é o mesmo inglês falado hoje. São 412 anos de mudanças na língua inglesa. Muitas palavras dela como thy, thee, giveth, maketh, hath, furtherance, etc. não são mais usadas hoje em dia. Além de várias estruturas gramaticais como os marcadores de tempos verbais, organização das palavras em uma sentença, etc, usadas em 1611, não serem mais comuns hoje em dia.
6. A preservação de manuscritos é essencial para garantir a precisão das traduções bíblicas. Quais são os principais desafios envolvidos na preservação e autenticação de manuscritos antigos da Bíblia? Como esses manuscritos influenciam as traduções modernas?
Os manuscritos do Antigo Testamento foram preservados com imensa precisão, com pequena quantidade de variações textuais, não demandando maiores cuidados. Os principais desafios recaem sobre o Novo Testamento em virtude da quantidade de variantes textuais existentes entre suas quase 6000 cópias de manuscritos gregos existentes e cuidadosamente preservadas em muitos museus do mundo. Atualmente, há dois institutos que se dedicam a documentá-las: o Institute for New Testament Textual Research at the University of Münster, Westphalia, Alemanha e o CSNTM, The Center for the Study of New Testament Manuscripts, Texas, EUA. Ambos se esmeram em pesquisar, documentar e fotografar esses manuscritos em alta resolução, disponibilizando-os ao público que, definitivamente, influenciam positivamente na confiabilidade da base textual do Novo Testamento, impondo aos atuais tradutores a responsabilidade de escolhê-los, de acordo com seus respectivos pressupostos teológicos.
7. Há diferentes abordagens teológicas e doutrinárias dentro do protestantismo. Como essas diferenças afetam a escolha de traduções específicas da Bíblia para diferentes denominações ou grupos protestantes? Existe alguma tradução que seja considerada mais neutra em termos de interpretação doutrinária?
Os pressupostos teológicos certamente afetam sim essas traduções. Embora sua maior ênfase recaia sobre a priorização de faixas etárias e públicos específicos, determinadas denominações priorizam o uso de bíblias com base textual do Novo Testamento no chamado Texto Receptus, editadas, atualmente, principalmente pela Sociedade Bíblica Trinitariana, rejeitando as variações textuais consideradas pelos textos críticos como o de Westcott e Hort e Nestlê Aland. Outras priorizam o refinamento ou decência da leitura bíblica congregacional, livre de cacofonias, proporcionada por edições mais atuais baseadas nestes dois textos, como foi o caso específico da ARA, editada no final da década de 1950, revisada e lançada em 2017 pela SBB. Há alguns anos, em um breve diálogo com o saudoso Pastor Carlos Oswaldo Cardoso Pinto, pude perceber que a NVI, lançada em 1994, parece adotar maior neutralidade ao adotar uma linguagem contemporânea, extremamente elegante e, ao mesmo tempo, fiel aos textos originais.
8. O desenvolvimento da tecnologia e o acesso a recursos acadêmicos avançados mudaram como as traduções bíblicas são realizadas e revisadas. Como a tecnologia tem impactado a qualidade e a precisão das traduções bíblicas protestantes? Quais ferramentas são essenciais para tradutores bíblicos hoje em dia?
Sem dúvida, aqueles que estão diretamente envolvidos no trabalho tradutológico têm muito mais condições de responder essa questão. O que posso dizer se restringe unicamente ao interesse pela atividade, na condição de estudioso. Minha visão é que a tecnologia tem impactado sim a qualidade e a precisão das traduções bíblicas, mas, principalmente, a celeridade das mesmas, em função da urgência da obra, visto que organizações cristãs consideram o número de línguas com acesso ao texto sagrado ainda muito baixo.
O relatório anual do acesso à Bíblia no planeta mais recente, datado de 2022, produzido pela Aliança Global Wycliffe, dá conta de um total de 7.388 línguas no mundo, das quais 724 têm toda a Bíblia traduzida, 1.617 tendo apenas o Novo Testamento. Diante desta lacuna, novas ferramentas têm sido construídas visando à agilização da tradução da Bíblia. De forma que, posso apenas citar funções que estes softwares desenvolvem como corretor ortográfico e, muito especialmente, rastreamento de caracteres e palavras que apresentam sinais de erro e destaque a palavras e trechos que pareçam estar faltando e a apresentação de sugestões de palavras.
- Professor Marcio Jose Estevan é bacharel em Letras com especialização em Tradução, formado em Teologia pela Escola de Educação Teológica das Assembleias de Deus (EETAD) e pelo Centro de Ensino Superior de Maringá (Cesumar), professor de Língua Portuguesa e Literatura; é presbítero na Igreja Evangélica Assembleia de Deus em Valinhos-SP. ↩︎