Por Pr. Alex Esteves1
Professor da EETAD, Autor das Edições Bernhard Johnson

O Evangelho segundo Lucas e os Atos dos Apóstolos constituem dois livros bíblicos interligados com o propósito de apresentar o que o Senhor Jesus Cristo ensinou e operou, tanto em Seu ministério público como no período de formação da Igreja Primitiva. Em ambos os livros, destaca-se a atuação do Espírito Santo, o que torna os escritos lucanos um compêndio de supremo valor para a pneumatologia.
Em sua apresentação evangélica de Jesus como o Filho do Homem (cf. Lc 3.23-38) – e, portanto, representante da humanidade perante Deus Pai – o divinamente inspirado Lucas reúne uma série de componentes que atestam a ação da Terceira Pessoa da Trindade na Vida e Obra do Salvador: Jesus foi concebido pelo Espírito Santo (cf. Lc 1.35); recebeu o Espírito em forma corpórea, no batismo (cf. Lc 3.21, 22); foi, cheio do Espírito Santo, conduzido para ser tentado no deserto (cf. Lc 4.1); alegrou-Se no Espírito Santo (cf. Lc 10.21); ensinou que o Espírito é graciosamente concedido àqueles que pedem (cf. Lc 11.5-13); predisse o revestimento de poder aos discípulos que permanecesse em Jerusalém (cf. Lc 24.49).
Algumas dessas passagens encontram paralelo no texto de outros evangelistas, corroborando com a unidade teológica das Escrituras; mas há, ainda, outras referências no Evangelho segundo Lucas que destacam o poder do Espírito de Deus, a saber: João Batista seria cheio do Espírito Santo desde o ventre materno (cf. Lc 1.15); Isabel foi cheia do Espírito por ocasião da visita de Maria, que já esperava o nascimento de Jesus (cf. Lc 1.41); Simeão tinha o Espírito sobre si, recebeu revelação do Espírito e foi por Ele conduzido ao Templo para conhecer Jesus (cf. Lc 1.25-27); Zacarias profetizou estando cheio do Espírito Santo (cf. Lc 1.67).
Existe uma notável continuidade finalística entre Lucas e Atos, podendo-se resumir o tema desta história teológica como o desenvolvimento do programa missionário esculpido em At 1.8, de modo que a ação poderosa do Espírito caracteriza a expansão da Fé Cristã desde Jerusalém e Judeia (caps. 1 a 7), passando por Samaria (cap. 8), e prosseguindo até aos confins da Terra (cf. 8.26-28.31, tendo em vista a conversão do oficial etíope e o ministério de Paulo aos gentios). Depois do Derramamento do Espírito no Dia de Pentecostes (cf. At 2), vêm efusões coletivas registradas em Atos 8, 10 e 19, além da plenitude verificada em At 4.31. Demais disto, o Espírito Santo é mencionado no introito (cf. At 1.2, 5); em vários discursos (cf. At 1.16; 2.17, 18, 33, 38; 5.3, 9, 32; 7.51; 15.8; 20.23, 28); em efusões individuais (cf. At 4.8; 6.8; 7.55; 9.17; 13.9); em conexão com os requisitos ministeriais (cf. At 6.3, 5); no contexto do primeiro concílio (cf. At 15.28); e em orientações diversas (cf. At 13.2; 16.6; 21.4, 11).
Há motivos suficientes para se admitir que o texto de Lucas-Atos possui um caráter didático, razão pela qual o seu conteúdo é um veículo de transmissão da mensagem cristã, e não uma coletânea de fatos aleatórios, pitorescos ou populares.
Diversos textos de Atos dos Apóstolos funcionam como apontamentos em que o autor descreve a fidelidade, crescimento numérico, comunhão fraternal e virtudes da Igreja em expansão (cf. At 2.42-47; 4.32-35; 5.12-16; 6.42; 6.7; 9.31). A aparente inconclusão do Livro mostra que, por sobre todas as adversidades, o Reino de Deus é anunciado “sem impedimento algum” (cf. At 28.31), abrindo-se espaço para a proclamação por parte das gerações vindouras.
Narrativas bíblicas cumprem função primordial no ensino doutrinário e teológico – se isto fosse negado, perder-se-ia muito do ensino bíblico, pois grande porção das Escrituras é formada por textos históricos. O Novo Testamento recorre a relatos veterotestamentários com fins didáticos, o que é referido de maneira explícita pelo apóstolo Paulo (cf. Rm 15.4; 1 Co 10.6, 11). O cerne da pedagogia de Jesus era composto por parábolas, e o Seu ensino sobre ressurreição baseou-se numa inferência a partir do texto em que Deus é apresentado como “o Deus de Abraão, Isaque e Jacó” (cf. Mt 22.23-33, que cita Ex 3.6). As Doutrinas da Criação, da Queda e da Redenção baseiam-se em fatos, os quais são contados em histórias e explicados em argumentos epistolares.
Na retórica dos escritores do Novo Testamento, encontramos, por exemplo, a forma (aristotelicamente) conhecida como “judicial”, em que o autor, mirando fatos pretéritos, apresenta provas acerca de determinado ponto. Muito da construção neotestamentária decorre de fatos narrados, explanados, interpretados e aplicados. Um exemplo exuberante reside em At 2.16, em que o apóstolo Pedro recorre a um raciocínio do tipo “isto é aquilo” para mostrar o fundamento do que acabara de acontecer – a retórica judicial de Pedro é empregada por Lucas para chegar à profecia de Joel, base espiritual que valida o acontecimento – anote-se, por oportuno, que não é a experiência que certifica a verdade, mas a verdade é que certifica a experiência.
De acordo com a teoria dos atos da fala, uma só enunciação (ato locutório) pode carregar consigo um ato ilocutório (intenção caracterizadora do enunciado) e um ato perlocutório (efeito pretendido junto ao que se ouve ou lê). Um funcionário público que escreve um texto de memorando (ato locutório) pode informar, descrever, solicitar, ordenar, premiar, advertir ou reprovar (ato ilocutório), ao passo que a expectativa quanto ao leitor estará inserida nos próprios limites do documento (aprender, precaver-se, alegrar-se, assustar-se etc.). Nessa linha, os autores bíblicos que escreveram histórias buscavam alcançar objetivos específicos.
Lucas é muito assertivo quanto à finalidade de sua escrita: tudo o que escreveu tinha como propósito tornar o “excelentíssimo Teófilo” inteiramente convicto da veracidade dos fatos de que já fôra informado; as “muitas e infalíveis provas” constituem o alicerce do ensino de Lucas, que atua como um teólogo-historiador (cf. Lc 1.1-4; At 1.1-3). Nesse diapasão, é necessário reconhecer, explorar e valorizar a terminologia lucana no que concerne ao Espírito Santo, e daí extrair conceitos pneumatológicos. Com efeito, o edifício teológico inclui um amplo mosaico de proposições doutrinárias, orações, liturgias, textos devocionais, doxologias, inferências, narrativas com escopo didático e profecias (de cumprimento imediato, histórico, messiânico ou escatológico).
Outro aspecto relevante é a parceria entre Lucas e Paulo, ilustrada pela inclusão do narrador como personagem em relato de viagens missionárias, o que se denota pelo uso de verbos na primeira pessoal do plural (cf. At 16.10ss; 27.1ss). Dado o vínculo pessoal e funcional entre o médico amado e o apóstolo dos gentios (cf. Cl 4.14; 2 Tm 4.11; Fm 24), não será desarrazoado entender que Lucas foi ensinado por Paulo numa medida que não se pode aquilatar, mas que não deve ter sido pequena. Essa circunstância justifica o nosso entendimento conservador de que inexistem contradições entre ambos os escritores bíblicos, diferentemente da fragmentação sustentada por teólogos liberais e pós-modernistas. Será também proveitoso pensar no fato nada desprezível de que Lucas-Atos supera, em extensão, todo o conteúdo das Epístolas Paulinas.
Diante de tudo o que vimos, surge uma indagação: como poderemos preservar nossa identidade bíblico-pentecostal? Na história da Igreja, movimentos desviantes vêm transitando entre abusos da Tradição, da Razão, da Experiência ou da Emoção, mas nada disso provou ser capaz de orientar adequadamente o povo de Deus. Tradição, razão, experiência e emoção devem ser crivados pela Doutrina que emana das Escrituras, e o conhecimento verdadeiro se obtém pelo exame acurado, necessariamente provido de oração, humildade e iluminação pelo Espírito Santo. Não há nada que o Espírito Santo queira comunicar à Igreja que não encontre fundamento no Texto que Ele mesmo inspirou, dado que jamais Deus incorrerá em contradição.
Empiricamente, é possível constatar nas igrejas o alto grau de analfabetismo bíblico, ao que se somam preconceitos, fluidez doutrinária, incredulidade, permissividade, resistência ao aprendizado e superficialidade do pensamento teológico. Muitos erigem seu repertório doutrinário com base em superstições, especulações e teologia importada de terceiros, mas sem um escrutínio consciente direcionado pela Bíblia Sagrada. A Escritura tem sido largamente utilizada como simples referência para que se declarem quaisquer impropriedades, sem que se examine o que o texto afirma por si, em seu devido contexto histórico e literário.
O escritor evangélico que oferece material mais farto quanto à Doutrina do Espírito Santo convida-nos ao estudo diligente da Palavra divinamente inspirada. Negligenciar o Texto é rejeitar a voz do Espírito, e o verdadeiro crente pentecostal precisa estar ciente de que “quem tem ouvidos” ouve “o que o Espírito diz às igrejas” (cf. Ap 2.7, 11, 17, 29; 3.6, 13, 22).
- Alex Esteves da Rocha Souza é evangelista da Assembleia de Deus filiado à CEADEB. Bacharel em Direito. Analista de Direito do Ministério Público Federal. Mestrando em Teologia Ministerial pela Carolina University (EAD). Relator do Conselho de Ética da Assembleia de Deus em Salvador, e membro da Comissão de Ensino da mesma Igreja, onde também serviu como vice superintendente na sede. Autor do livro O Reino que Não Será Destruído: Estudos Elementares no Livro do Profeta Daniel (Edições Bernhard Johnson). Professor e colaborador do material didático da EETAD, tendo escrito os subsídios dos livros Hermenêutica Bíblica I, Doutrina da Salvação, Profetas Menores e Daniel e Apocalipse ↩︎ ↩︎